domingo, 25 de fevereiro de 2018

Porque não horar quem não nasceu?



Quando uma pessoa da minha família soube que ia realizar uma cerimônia budista para homenagear o bebê que perdi ela me veio com esta:

“- Isto e tão mórbido, é masoquismo, é derrotismo, nunca vi uma pessoa celebrar o que se perdeu!”

Então respondi:
“- É muito natural que não entenda, pois você nunca perdeu nada, ninguém da valor ao que não se perde.”

Já expliquei em outro post a visão budista sobre a questões de vida a morte durante a gestação. Neste mesmo post expliquei que cada vida é única e que por isto mesmo não pode haver um critério que meça o seu valor. Vale ler o post anterior antes de continuar lendo este, ou leia depois, fica a seu critério.

Primeiramente leve em consideração que quem nunca perdeu não pode dar valor ao que se perde. A monja sempre fala em suas aulas que para perder o ego, se deve primeiro ter o ego, ninguém sente falta do que não teve. Por exemplo: um surdo ou cego de nascença, estes não podem sentir falta de ouvir ou enxergar, pois nunca tiveram estes sentidos, logo aprenderam a se virar na medida do possível sem isto, se obrigaram a se adaptar. Um surdo pode sentir falta de se comunicar com o mundo ouvinte, mas não sente falta de ouvir, pois este dom ele nunca teve.

A pessoa que nunca teve filhos não pode saber o que é ter filhos e quem nunca perdeu, não sabe o que é ter e perder. Aliás, na perda gestacional muitos sequer consideram que a mulher teve um filho, pois não viram a criança nascer. Portanto não espere muito destas pessoas, o máximo que terás delas são os achismos, os consolos que não consolam.

Quem passou por uma perda gestacional sabe o quanto a gestação foi sentida, cada sintoma, cada enjoo, cada tontura, a vontade de dormir, os hormônios agindo em seu corpo. A mulher sente na pele o quanto seu organismo se modifica durante a gravidez, ela de certa forma sente que tudo esta diferente, sente aquele Ser junto dela no seu ventre. Portanto ninguém pode dizer que ela não teve algo, pois ela realmente teve.

Em poucos meses a mulher que deseja um filho sonha em um dia ouvir o chorinho do seu bebê, sonha com dia que vai passear com ele de carrinho na praça, etc. Ninguém pode dizer que não houve algo, pois houve, houve sintomas, houve o desejo, os sonhos. Houve aquela pequena sementinha que modificou a vida dos pais para sempre. Como expliquei no outro post, esta sementinha tem tanto valor quanto qualquer outro ser que tenha vivido nesta terra, não importa se foi uma vida celular, embrionária, fetal, uterina, prematura, infantil…

Assim como uma pessoa que viveu e andou por esta terra, cada bebê tem o seu valor. Com um ente querido que convivemos e veio a falecer fazemos funeral, choramos por ele, enterramos, se manda rezar missa, se presta culto, etc… Os pais que perderam um filho igualmente choram. Porque não também valorizar este ser que teve uma vida, nem que seja no útero? Sim, esta vida é digna de respeito, ela tem que ser validada, ela deve ser honrada!

Para os ocidentais, acostumadas com o ponto de vista judaico-cristão, soa um tanto estranho celebrar a vida num momento tão mórbido. A morte nos soa como algo mórbido, lúgubre, fatal, sem volta, por isto temos uma visão tão pessimista dela. Por isto falar de uma cerimônia que homenageia bebês abortados como o Mizuko Kuyo soa estranho para algumas pessoas. Parece que estamos celebrando um fracasso e não a vida.

Porém a visão budista da vida e da morte parece ser mais leve, pois o conceito de morte é diferente, é somente uma passagem para outro estado. É por isto que no Japão o luto é vivido de outra forma, é celebrada a vida e não a morte. Os festejos de finados no Japão é o mais importante feriado a onde as pessoas visitam seus parente, homenageiam os entes queridos e fazem festas.

Eu já digo que os pais que passaram pela experiência da perda gestacional e neonatal devem sim celebrar o vida de seus filhos, nem que esta vida tenha sido tão breve. Esta celebração não deve ser vista como “algo que se perdeu”, mas como algo que se teve e que transformou a vida, ensinou a amar... E porque não dizer? Ensinou a dar valor a vida!

Espero que o exemplo da cerimônia do Mizuko Kuyo possa inspirar os pais que passaram pela experiência da perda gestacional para que estes encontrem meios de celebrar a vida de seus bebês. Que estes pais possam ter uma visão da perda gestacional mais branda e humana. Que mesmo que os pais enlutados não sejam budistas possam se inspirar em tal prática e encontrar uma forma de honrar seus filhos.

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