sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Perda Gestacional e "As Quatro Nobres Verdades"


Este era um texto que queria ter escrito a mais tempo, cheguei até a iniciar um, mas como estava ainda muito abalada, não ficou bom. Hoje veio a inspiração após ler um relato de uma mãe em um grupo de apoio a perda gestacional. Segue o texto!

Quando no teste de gravidez surge o “positivo” e descobrimos que uma nova vida esta por vir logo pensamos na mais sublime manifestação da vida, a chegada de um novo ser ao mundo. A expectativa que se tem na maioria das vezes é a da vida, porém, infelizmente, nada neste mundo, absolutamente nada, nos torna tão especial a ponto de nos livrar da decepção de uma grande perda. Sim, a "morte" (não vida) pode chegar para mim e para você. Se tem uma coisa que a perda gestacional (e neonatal) ensina é que não temos o total controle do nosso destino. Contra o tempo e seus imprevistos, somos completamente impotentes.

O sentimento de impotência com relação aos imprevistos da vida pode acontecer com muitas coisas que não planejamos, com um carro roubado, com um relacionamento que acaba, com um emprego que se perde… O problema é que na perda gestacional tem outro sentimento em jogo, o amor por um filho. E ai entramos numa outra questão, quanto mais o amamos, maior é o apego, consequentemente maior é a dor da perda. O preço do amor é tão grande quanto o preço da dor. Apesar da dor ser grande, deixo claro que cada indivíduo a sente a sua maneira.

Outro dia li num relato de uma mãe que perdeu o filho, o quanto ela lamentava ter que passar por tanta dor, também lamentava a ironia do destino de te-la feito passar por isto. Ela fazia o questionamento sobre se um dia ia “voltar a ser o que era antes”. Como já mencionado, não temos o poder de mudar nosso destino com relação ao que passou, somos impotentes com relação a isto. 

"Voltar a ser como era" implica em não viver o momento que vivemos agora, consequentemente não ter vivido nem o momentos ruins e nem os momentos bons. Se tivéssemos o poder de “voltar a ser como antes” não só teríamos o poder de não sentir dor, mas também de apagar todo o amor que gerou o sentimento de perda. Não temos mais o poder de mudar o passado, o que temos de concreto é o presente, e é neste que temos que atuar.

Não há outra saída, quando se ama e se perde, fatalmente sofreremos. Viver cada dia é correr o risco de ganhar e perder, de amar e sofrer. Esta é a intransitoriedade da vida, nada é permanente, tudo pode mudar num estalar de dedos, num momento estamos felizes cheios de planos, no outro estamos devastados pela dor, sem rumo e sem chão.

Buda num dos seus primeiros discursos fala das quatro nobres verdades, seriam elas:
Dukka - a consciência da existência do sofrimento;
Samudaya – a consciência do que origina o sofrimento;
Nirodha – a consciência de que podemos cessar este sofrimento;
Magga – a consciência de que podemos encontrar os caminhos para cessar este sofrimento.

Com estas verdades Buda tinha o objetivo de nos ensinar a compreender os mecanismo que geram o nosso sofrimento. Assim sendo, tomando conhecimento das causas e dos efeitos do sofrimento, podemos ter ferramentas para entende-lo e "supera-lo".

A perda de um filho nos ensina de maneira muito dramática primeira nobre verdade descrita por Buda (Dukka). Quando perdemos um filho tomamos o conhecimento de que a dor existe. Este sofrimento ainda é  maior porque nutrimos um sentimento de amor pelo que perdemos, temos um apego muito grande ao que amamos (Samudaya). O que é mais complicado para quem esta enlutado é tomar consciência de que podemos dar um novo significado para a perda (Nirodha).

Superar o sofrimento não é passar uma borracha e apagar da vida tudo o que aconteceu, não é voltar no tempo de deixar de amar, não é impedir que as coisas ruins aconteçam, etc. Superar o sofrimento é dar um novo significado para este sentimento. Buda no seu ensinamento "Magga" deu uma receita que serve para nortear nossos passos para encontrar um novo significado para a vida, o Nobre Caminho Óctuplo.

A princípio o sofrimento do luto na perda gestacional gera sentimentos conflitantes, culpa, vazio, raiva, tristeza, desespero, revolta, saudade, pesar… São sentimentos mais do que normais, pois no inicio ainda estamos tentando processar o que aconteceu, mas com o tempo temos que tirar deste turbilhão os melhores ensinamentos. Dentro de tudo que aconteceu o que isto me trouxe, sentimento de dor ou de amor? Não seria melhor levar mais amor? O que seria melhor, lamentar eternamente a perda ou bendizer a oportunidade de ter vivido um grande amor? Enfim… Pode parecer doloroso no início, mas com o tempo encontramos formas de aprender a conviver com a dor e torna-la mais branda.

Gosto de lembrar de meu filho como uma coisa muito boa que aconteceu em minha vida, um ser que me acompanhou por um tempo, mas que neste curto espaço de tempo me ensinou o amor mais sublime e incondicional, o sentimento mais nobre que uma mulher pode nutrir na vida, o amor de uma mãe por um filho. Este ser poderia ter ficado comigo dois meses ou uma "eternidade", nada mudaria o meu sentimento de amor incondicional. Este filho me tornou uma pessoa melhor, mais compassiva, mais empática, mais solidária com o sofrimento. É um filho que partiu, mas que modificou meu coração. Meu filho estará sempre vivo nas minhas lembranças. É este amor incondicional que me faz hoje querer que ele esteja com luz a onde quer que esteja. Ele/ela cumpriu sua jornada por aqui da melhor forma possível e, no que depender de mim, esta passagem sempre será muito honrada.

Esta foi a forma mais “correta” de superar o sofrimento, não esquecendo o que aconteceu, mas aceitando os ensinamentos que a perda me trouxe e dando um novo significado a tudo isto. Meu filho foi entregue para a luz e hoje trilha seu caminho. 

Gassho. _/|\_




Obs.: em outro texto falo sobre o luto e o caminho óctuplo.


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